Vertigem da Ordem
Galeria MCO
Abril 2019, Porto
Ordem e Vertigem. Falhas na Rede.
Prosseguindo a sua pesquisa sobre a variedade de recursos gráficos, Cláudia Amandi conduz a perceção do espectador no interior de um equilíbrio entre ordem e vertigem. Se a ordem se define como a organização das coisas, a vertigem surge como a ameaça de descontrole e desorientação, ou uma queda no vazio. A alternância entre a rede de segurança e perigosos vazios no interior dessa superfície, marcam assim este conjunto de desenhos de 2018 e 2019.
Como habitualmente, Cláudia Amandi trabalha em séries, podendo investigar as possibilidades de variação e repetição de um modelo visual e processual.
O modelo visual é um ícone básico que enuncia a natureza da imagem, como conjuntos de linhas, traços ou círculos. O processo indica o conjunto de regras que definem os movimentos e ações a respeitar durante a execução. Assim, esta exposição apresenta diferentes conjuntos, cuja montagem e composição formam em si mesmo um objeto gráfico distinto de cada desenho singular. A relação entre módulo e padrão suscita uma dinâmica do olhar e da própria posição de observador, pela necessidade de aproximação e afastamento ao plano da parede, bem como, pelo confronto entre as escalas das formas.
As estratégias visuais contemplam, como em trabalhos anteriores, a repetição e um efeito de semelhança, onde se evita, a ideia de um gesto mecânico ou igual. A repetição manual, mesmo quando mediada por instrumentos mais neutros, como espátulas ou carimbos, introduz uma variação orgânica associada aos ritmos do próprio corpo. Precisamente, do desacerto e da diferença emerge a presença, diríamos, humana, esforçada por encaixar, ajustar e ligar, empenhada em resgatar o processo do erro e da falha sempre à espreita. Dessa luta ou esforço continuado resulta então um efeito de vertigem, ou uma perturbação. A imagem adquire uma energia não circunscrita ao programa inicial, abrindo o princípio inicial a uma oposição entre desenhador e desenho. Este torna-se uma força autónoma ou uma ordem própria contendo as suas dinâmicas que por vezes, o desenhador contempla em interrogação: como é que está a ficar? O que está a acontecer?
Na série "Retângulos", grupos de linhas verticais e horizontais desenhadas com barra de carvão cruzam-se formando uma grelha de espaços variáveis num jogo de luz e transparência. Nesse processo traçam-se linhas retas à mão, o mais paralelas possível, num esforço de concentração motora. Na aparente ordem gráfica e na repetição do gesto, o olhar depara-se com múltiplas possibilidades de formação de retângulos e planos espaciais, entrando desse modo numa espécie de labirinto. É notável como num dispositivo aparentemente inócuo, associado ao treino manual para disciplinar o movimento do braço, se compõe um universo gráfico singular, um espaço percetivo próprio. As variações de intensidade e pressão, ou a plasticidade da barra de carvão, contribuem para um efeito óptico de vibração tonal, acentuando a variação da trama. Ainda dentro da lógica do processo, “Deslize” parte de um movimento de arrasto da tinta da china na folha de papel, formando espaços negativos e positivos, desta vez com um caráter expressivo acidental e de efeito mais inquietante, pela angulosidade das formas. Em “Emenda” desenham-se cruzes alinhadas de modo a estabelecer contacto. Ao fim de algum tempo as sequências abrem desacertos difíceis de emendar, distorcendo a malha gráfica, acidente do qual resulta uma vibração. Quando o desenho atinge o centro da folha, esta roda 180 graus e o desenho é reiniciado na outra margem. As duas metades são assim emendadas numa linha do meio, quando ambos os lados se aproximam. Para a sua união, o desacerto é inevitável e a sua junção não é perfeita, mas emendada, remediada. “Perímetro” resulta do carimbo de um tubo com tinta, onde as manchas negras negoceiam a sua forma acidental com a geometria do círculo. Em “Espaço Vazio”, a tinta aplicada é aleatoriamente retirada com um instrumento circular, por punção, produzindo espaços brancos circulares, como se o desenho regressasse a um estado vazio, original, revertendo tempo ou virando fita magnética do avesso, esvaziando o espaço para o seu estado original.
Neste conjunto de séries é adiada a síntese entre Ordem e Caos. Nos títulos de “Emenda” ou “Deslize” anuncia-se uma falha ou uma queda, um movimento de compensação, de alerta. “Perímetro”, ou “Retângulos” convoca o domínio da geometria, e assim de uma ordem de representação. Mas as suas imagens mostram labirintos, líquidos em fuga, massas transbordantes. Pelo percurso da exposição, sente-se o efeito das formas sobre as formas, a sobrecarga das coisas sobre as coisas, o movimento criado pela vizinhança, contacto e pressão. Como vagas ou massas tectónicas que repentinamente desabam sobre si, quando antes pareciam imutáveis e imóveis.
Cláudia Amandi continua assim a desenvolver uma pesquisa em torno do desenho como um fazer de narrativas abstratas acerca de marcas e gestos básicos do desenho, formalizando estruturas onde marginalmente se ensaiam os elementos da sua fragmentação. Neste conjunto de desenhos e como sugere o título da exposição, os temas são abstratos e remetem para o processo, para a ação ou o conceito formal: deslizes, retângulos e emendas, enquanto noções não sensíveis ou imateriais, mas subjacentes e concretas à experiência e perceção. (I)
(PFA)