Muitos, Work in Progress Many, Work in Progress Lugar do Desenho Fundação Júlio Resende, Gondomar Janeiro 2015
Multíplo e Singular
Desde a escultura “Falso Território” (1998) que Cláudia Amandi trata variados processos e linguagens entre a escultura e o desenho. Esse espaço intermédio confirma-se pela materialidade e insinuação física dos desenhos, mas também pelo sentido gráfico e estrutural das esculturas. Todavia, e considerando a diversidade dos trabalhos, existe desde “Falso Território” uma incidência muito significativa no processo de aglomeração repetitiva de um elemento escolhido, podendo ser um alfinete, uma linha, uma carta de jogar. Esse elemento e a sua expansão funcionam como modelação do espaço na ambivalente condição escultórica e gráfica de uma imagem aspirando à materialidade da escultura. Ao longo de vários anos Cláudia Amandi explorou processos de repetição, acumulação e expansão em sistemas modulares, permitindo também a variação e usos de materiais e fontes de inspiração, geralmente associadas a objectos e imagens comuns ou quotidianas. “Desenhos Vazios” (2004/06) propõe uma imagem formada por inúmeros traços verticais em formatos panorâmicos. Dos milhares de partículas desenvolve-se uma mancha evocativa de paisagens sem escala. “Restos” (2006) combina a percepção da imagem plana com a materialidade da escultura, ao encaixilhar papel triturado, tratando-se na verdade de facturas, recibos e correspondência diversa, reciclados numa amálgama ilegível. Algures, no entanto, esconde-se uma palavra, como derradeiro vestígio de significado. “Fortaleza” (2006) é uma pequena escultura feita como um castelo de cartas, enquanto exercício de paciência e jogo de equilíbrio. “Erros”(2006) tal como “Restos” trata dos vestígios e da saturação informativa, sobrepondo a mancha de palavras através de barras verticais de impressões de textos. “Oscilações”(2014) são fotografias ou digitalizações de alfinetes a partir de uma imagem de Leonardo da Vinci, recuperando movimentos espiralados do desenho. Neste caso, a fotografia sintetiza a origem escultural num resultado gráfico, onde a disposição dos alfinetes resulta numa sucessão atmosférica de traços. Dando continuidade a esta exploração, algumas das séries remetem para um tipo de repetição mecânica associada a um exercício maquinal e caracterizam-se pela geometria e regularidade evidentes e decorrentes de processos de digitalização e sobreposição por camadas de textos, sinais e imagens. Como exemplo podemos englobar “72 páginas, 510 dias” (2012/15) ou “Erros”, onde o processo é relativamente cego em relação aos efeitos visuais, aludindo assim a uma certa autonomia face aos critérios de composição e de gosto. Mas também em “Fracção” (2013/15) os gestos são condicionados a uma lógica numérica de construção sugerindo a mecanização do processo. Em outros conjuntos, o processo é orgânico evocando sistemas biológicos pelo acumular de um elemento, alastrando e modelando a superfície até formar um corpo gerado pela nebulosa de pequenas marcas. Esse corpo remete para a ideia de enxames, infestações, epidemias, cardumes. São sistemas de multiplicação de um ser actuando colectivamente de modo invasivo e ameaçador. Nestes exemplos, não só é relevante o número muito elevado de elementos, como também as acções e movimentos desenvolvidos no espaço. Essas acções são padronizadas por movimentos facilmente identificáveis em espirais, fluxos lineares ou expansão pela superfície. Os títulos servem uma função figurativa permitindo ver nestas aglomerações de marcas a imagem de um fenómeno natural de escala variada. Seja a contaminação do corpo como em “Endemia” que partilha com “Praga” um efeito de invasão e ameaça. Ou “Revoada” figurando uma aglomeração de animais, geralmente ameaçadora para um hipotético predador. Nesses fenómenos naturais existe a comum ideia de um programa colectivo onde cada individuo se comporta dentro de um movimento global e coordenado, sem a determinação de um comando hierárquico. Na exposição podem distinguir-se ainda duas situações distintas: algumas séries resultam do registo de acções e efeitos formais próprios, isto é, realizados para a concretização de uma imagem. Outros trabalhos como “Resíduos” e “Grelha” funcionam por efeito residual dos trabalhos anteriores, enquanto vestígio, resto, despojo. Poderíamos então falar de trabalhos resultantes de uma atitude activa e deliberada e outros que surgem de uma atitude passiva ou derivada, onde o acaso, o efeito colateral e a natureza involuntária das acções determinam a imagem final. Nas suas diferentes versões, contempla-se nesta exposição, uma interrogação e um exercício já longamente aprofundados sobre a relação entre a imagem do desenho e os processos da sua formação. Nos diferentes grupos de imagens, observa-se a prática do desenho como exaustiva acumulação de gestos e acções tipificados em pontos, linhas e grelhas. A imagem vai formando-se, gerando espaços imprevisíveis e surpreendendo o observador nas múltiplas variantes de processos aparentemente próximos e fundamentais como traçar linhas horizontais ou juntar traços curvos. As superfícies adquirem uma presença absorvente com muitas camadas de profundidade, acentuando as suas qualidades espaciais. Apesar da repetição prolongada e estendida no tempo e apesar da vontade de repetir ou “fazer igual”, na verdade, nenhum gesto ou acção resultam na mesma imagem, As pequenas diferenças daí resultantes, a sua sobreposição e acumulação acentuam a passagem do tempo, sedimentadas na materialidade do desenho, como o registo de acções tomando o espaço. (I)