F = m.a, 1989.
Cadeiras, madeira, pedra
Ainda no contexto de exercícios curriculares de trabalho escolar, revelam-se algumas das características mais evidentes da obra de Cláudia Amandi, como a observação, transformação e manipulação de objetos e formas comuns, pelo desvio da função e pela simulação de ações e operações. A obra propõe uma narrativa, onde o objeto é uma personagem em transição: uma cadeira em deslocação, alfinetes movendo-se em turbilhão, cadernos desfeitos em memórias ou um baralho de cartas formando um castelo.
F=m.a, a primeira escultura de Cláudia Amandi foi realizada no terceiro ano do curso de escultura e serviu para confirmar uma vocação ainda incerta. A escultura como modelação, forma de representação clássica ou como criação de formas de raiz não parecia uma atividade particularmente motivadora para Cláudia Amandi. Todavia, no contexto mais aberto de propostas individuais, surgiu a possibilidade curricular de usar materiais e objetos diversos em combinação com a produção de formas. F=m.a é assumida como obra autoral pela exploração de novas possibilidades de criação da forma e pela integração de objetos preexistentes permitindo a inscrição da realidade pelo uso de uma linguagem corrente e impessoal, gerando um distanciamento na relação entre o objeto e o autor. Esse distanciamento é produzido pelo caráter não privado dos objetos, pelo seu anonimato e neutralidade assegurando uma presença exterior, indicando algo vindo de fora. Desse modo, a apropriação de formas e objetos do quotidiano potencia a realidade como um campo de inspiração e possibilidade escultórica. Pela lição da escultura contemporânea, pelos exemplos de Joseph Beuys ou da Arte Povera, o espaço urbano e doméstico transfigura-se em possibilidades formais conteúdos simbólicos. A realidade dos objetos comuns interpõe-se como um espaço entre a decisão puramente autoral e o objeto percebido pelo espectador
Nessa distância forma-se um intervalo especulativo feito de jogos de espelhos, paradoxalmente suscetível de produzir o reconhecimento autoral. Quando a escultura se estrutura pela presença de duas cadeiras, o gesto de criação é aceite como autoral, catalisando processos de criação e composição de formas. Trata-se de duas cadeiras comuns, de madeira, lado a lado, com duas almofadas esculpidas em madeira. Os dois conjuntos marcam muito claramente a oposição entre dois corpos ausentes, mas elipticamente referidos pela presença dos objetos. Em lugar dos corpos encontram-se dois volumes sob as almofadas, deformando-as. Esta primeira escultura de Cláudia Amandi combina objetos esculpidos e formas inventadas sob um suporte apropriado de cadeiras, cuja presença convoca o espaço doméstico e quotidiano. As cadeiras utilizadas correspondiam à forma clássica e comum de cadeira de madeira, acentuando não só a sua neutralidade, como também uma certa intemporalidade. Não afirmavam um discurso de design ou uma atitude, permanecendo impassíveis no seu carácter exemplar. Numa observação imediata, a presença das cadeiras exerce uma espécie de camuflagem da obra no espaço enquanto objeto artístico. Pela sua escala, forma e material, a escultura funde-se com o ambiente parecendo não pertencer a um espaço de representação e desse modo, mantendo-se no espaço comum dos objetos. O olhar mais atento permite ver então as almofadas deformadas por pedras.
Nesta primeira obra existe afirmação de uma estética pessoal desencadeada pela apropriação de objetos domésticos e da respetiva linguagem do quotidiano. Apesar de distante do gesto Duchampiano, do ready made, é impossível não referenciar esta obra a uma estética dos objetos comuns, no entanto, contextualizados numa ordem onde a sua função prática e simbólica investe a obra de familiaridade e simultaneamente, estranheza. Para além de Duchamp, poder-se-ia também pensar no Surrealismo e nos seus objetos disfuncionais.
Porém, talvez a referência visual mais rigorosa se encontre na tradição metafísica onde em lugar de uma violenta transformação do objeto, se assiste a uma subtil deslocação para dentro da perceção do espectador. Não existe propriamente uma subversão, o esvaziamento da cadeira, porém, a sua condição vacila entre a representação de si e, criação metafórica, como indeterminação do seu estatuto. Recorda então Ceci nes’t pas une pipe de Magritte e aproxima-se da condição metafísica da pintura de Chirico. A estratégia metafísica baseia-se na condição de objetos familiares vistos numa circunstância diferente, por efeito de uma deslocação, assumindo estranheza. A arte metafísica parte dessa banalidade deslocada ao insólito, feita de objetos comuns tornados singulares. Como sublinha Jean Clair[1] a propósito da Arte Metafísica, as representações surrealistas e abertamente fantasiosas eram menos perturbadoras relativamente às imagens metafísicas, porque desde logo se assumiam como de um outro mundo. Todavia, as imagens metafísicas, pela sua proximidade com a experiência comum e quotidiana, atuam no nosso espaço de ação e perceção. Nesse sentido produzem uma deslocação das coordenadas mantendo-se no espaço do possível, do real.
Paralelamente à prática da escultura, Cláudia Amandi era já nessa altura uma regular praticante de desenho. Mas, revela-se já o gosto pelo desenho como combinação de elementos, apropriação de superfícies, aproximação ao concreto das formas e dos materiais. Numa época ainda marcada escolarmente pela pintura matéria – onde desde as pinturas de Antoni Tápies até às pinturas brancas de Julião Sarmento – os primeiros desenhos de Cláudia Amandi eram simulações de superfícies metálicas, madeiras, cimento ou gesso. Planos onde se combinavam e colavam desenhos, se ensaiavam relações diagramáticas de imagens. Nesses desenhos assistia-se ao processo mental de associação e criação de formas pela disposição de estudos e esquissos, parcialmente rasurados, repetidos e alterados. Porém, para lá do carácter relacional destas imagens, produzia-se a sua montagem em superfícies com corpo material, não se abdicando de uma presença concreta, sólida e permanente. Nesse processo preservava-se a ideia dos materiais da escultura, dos seus processos de montagem, e da própria ideia de massa ou densidade. A aparente organicidade de algumas imagens tinha como contraponto a estrutura regular das figuras ordenadas em grelhas, séries, reticulas.
Nessa relação entre o desenho e a escultura, F=m.a prolonga a experiência do desenho, pela aplicação de uma base reticulada funcionando como marca de um território referencial, um sistema de linhas regulares abstratas servindo de suporte, indicando também ritmos gráficos que acentuam a geometrização das cadeiras. A forma das almofadas e das pedras sobre as almofadas não só funcionam como um contraponto orgânico à geometrização de base, como prenunciam uma força ameaçadora da regularidade indicada no chão. Sobre um chão/território regular e impassível, as pedras introduzem a deformação como uma lei do tempo. Um corpo estranho coloca em causa a regularidade como metáfora da inevitável desordem, do tempo. A retícula do chão tem referência no papel quadriculado que serve de suporte aos desenhos, tornando-se também um elemento alusivo à equação do título. Suporte da imagem e suporte da escultura coexistem como ligação entre desenho e escultura, numa das relações recorrentes da obra de Cláudia Amandi.
Nesta obra, a possibilidade de a escultura agregar objetos, formas exteriores e também de contar histórias e enunciar processos foi o sentido de revelação como escultura para Cláudia Amandi. A relação entre as formas criadas (pedras) e as formas apropriadas (cadeiras) marca um contraponto entre a realidade e o plano mental das formas devidamente mediado pelas almofadas. O sistema dos objetos enuncia a relação onde se estabelece formalmente a ação do peso sobre almofadas pousadas nas cadeiras. Como forma escultural, as almofadas constituem-se como símbolos miméticos – esculpidos segundo os princípios tradicionais e cumprindo uma função mimética clássica. Esta parte da peça encontra-se assim no nível mais convencional da figuração, apoiado em objetos apropriados diretamente da realidade e deformado por entidades igualmente esculpidas, mas funcionando por seu turno como signos abstratizantes da mente: formas sem nome, dadas à especulação, à ambiguidade de interpretação. Desse modo, realidade, imitação e projeção mental formam a hierarquia desta peça inaugural cuja segurança na associação de formas e materiais, bem como no domínio das escalas e das formas, confere à peça uma presença de grande magnetismo. Que representam as pedras: metáforas de corpos, dois corações lado a lado pulsando? Naturalmente, esta ordem de significado é parcialmente delegada para o campo da interpretação, sob a tutela de algumas associações imediatas: a dualidade, a identidade reciproca entre os objetos, as ligeiras diferenças. Mas o efeito visual desta repetição confere à peça o seupoder de resgate da atenção.
Com efeito, a repetição do mesmo conjunto de formas, ou a duplicação dos objectos, produz desdobramento das aparências, como um reflexo no espelho. O olhar do espectador fica assim suspenso entre as duas cadeiras com almofadas deformadas, procurando repetições e diferenças. Este procedimento de repetição ou de reflexo amplia o efeito de enigma, funcionando como um procedimento retórico destinado a orientar o olhar do espectador para a circulação alternada entre os dois objetos parcialmente idênticos. A colocação das cadeiras lado a lado viradas a um público imaginário foi o resultado de uma exploração gráfica onde Cláudia Amandi investigou diversas hipóteses, nomeadamente a colocação frente a frente. Essa hipótese foi, no entanto, descartada para evitar a ideia de diálogo, confronto. Eliminando essa sugestão de tensão, reforça-se a unidade da peça e simultaneamente uma unidade na dualidade, na repetição, no desdobramento, também como possibilidade de dois instantes de uma ação e estado de um corpo. A repetição cria, como já foi referido, a mobilidade do movimento ocular, estabelecendo a atividade que anima e traz inquietação a uma atmosfera originalmente tranquila, equilibrada e pacificada. )(I)