Vácuo
Vacuum
Galeria ArtLab 24
#008CA, Fevereiro 2020
Espinho
Duplos e Espelhos
Numa breve e talvez limitada definição, durante a análise de um desenho, o observador considera três aspetos distintos: a iconografia, a execução e o carácter material do objeto gráfico. No que respeita aos dois últimos fatores, contemplam-se as ações e os gestos realizados durante o processo e também, os materiais e os suportes. Execução e materialidade assumem-se como uma dualidade em estreita ligação, enquanto existe uma relação complementar entre as condições físicas do desenho e as ações realizadas com os instrumentos e nos suportes.
No seu aprofundado percurso gráfico, Cláudia Amandi desenvolve uma pesquisa sobre as condições em que se fazem e se percecionam as imagens gráficas. Essa investigação envolve as variantes sobre métodos e processos, materiais, instrumentos, suportes, e também, os referentes visuais, ou seja, a iconografia. Os seus trabalhos incidem sobre operações de repetição e variação, montagem modular de superfícies, oposição entre abstração e figuração, afinidade entre representação e códigos gráficos como a escrita, fronteira entre plano e volume.
Incluída no conjunto das séries anteriores, existe uma singular modalidade desenvolvida por Cláudia Amandi, onde a realização gráfica implica a produção de um efeito contíguo e adjacente, como um resultado colateral ou secundário. Assim foi em Fração (2014/15) onde os traços que saem da folha marcam uma folha por baixo, ou em Grelhas (2014/15) uma folha perfurada de maneira padronizada serve de matriz para outras imagens. Estas experiências de transferência de um suporte para outros suportes, ou de “fuga” de um desenho para outro desenho, é explorado de modo mais insistente nesta exposição, de seu título, Vácuo.
Para uma primeira impressão, os conjuntos agora apresentados prolongam as características das séries precedentes, nomeadamente pelo efeito de padronização e repetição de marcas abstratas. Mas neste caso, as séries de trabalhos definem-se por uma relação de estreita complementaridade ou dependência. O exemplo mais flagrante desta relação é a série Vácuo, onde duas folhas apresentam linhas constituídas por séries de pequenos traços. As margens laterais de cada retângulo estão preenchidas por essas justaposições, originando uma espécie de moldura lateral. Ao desenhar em cada margem, os traços passam para a outra folha formando as composições do espaço central da composição. As direções das linhas, aparentemente aleatórias, resultam da posição mais prática ou adequada entre os dois suportes, na mesa de trabalho, durante a execução. Assim, cada desenho é indissociável de outro desenho, numa mútua construção e numa espécie de jogo de espelhos.
Em Vazio, um registo similar à escrita é feito em papel vegetal que passa para outra folha por intermédio de papel químico. A superfície inferior acumula sucessivas camadas de linhas, até uma quantidade virtualmente infinita. Consequentemente, existe uma superfície de inscrição, outra de transferência e, uma superfície final onde se acolhem e sobrepõem todas as inscrições.
Com um esquema similar, em Todos, as folhas são dobradas e perfuradas com um furador de escritório e no final, todos os conjuntos de padrões servem de matriz para uma única imagem, uma espécie de depósito. Na montagem de Todos, encontram-se lado a lado, duas formas de sobreposição. O grupo de matrizes sobrepostas, colocadas numa aparência de livro ou caderno com as suas páginas, encontra-se ao lado do desenho que acumula todas as imagens. Esta dualidade ilustra também a diferença entre uma presença gráfica de imagem e a presença escultórica ou material do livro, ou caderno, uma espécie de corpo e sua projeção espacial.
Como variante onde se desafia a condição figurativa das formas, em Sol um semicírculo é usado como máscara para desenhar uma sucessão radial de traços, uma espécie de sucedâneo das marcas de Vácuo. No final, o semicírculo é virado para cima, como uma cobertura, deixando uma imagem alusiva a uma pálpebra com pestanas, ou ainda à figura estilizada do sol, que, aliás, dá o título. Estes desenhos sugerem mais diretamente uma dimensão “mecânica”, não só associada à máscara, mas ao virar da forma, tapando ou destapando, transformando o semicírculo numa espécie de cobertura que abre e fecha. No estado ativo de exposição, ou no momento em que o trabalho se apresenta ao espectador, o semicírculo virado para cima, “esconde” o processo de execução, deixando apenas o efeito secundário, alusivo a uma pálpebra fechada, um olho que não vê, ou um sol que cega.
Em Distância, acentua-se a relação entre o registo gráfico e os instrumentos, a partir de uma solução já explorada anteriormente, (Erva Daninha, 2016) onde as canetas de feltro gastas são utilizadas até ao fim. Porém, em Distância, essa relação é ampliada pela qualidade absorvente do papel de algodão que aumenta o consumo de tinta. As linhas verticais do centro são feitas com um esquadro e, numa visão mais atenta, descobre-se, afinal, uma ligeira inclinação, falhando a suposta função de esquadria. Neste exercício, os materiais contrariam-se e os instrumentos desviam-se da sua função.
Como situação mais singular, um dos desenhos estabelece o reflexo de um objeto no espaço da galeria, mimetizando uma portinhola de contador elétrico e pequenos retângulos pretos na sua vizinhança. Esse desenho apresenta-se como uma presença que apenas se justifica pelo reconhecimento de uma outra presença fortuita e alegadamente insignificante, como se cada coisa, por mais ínfima, tivesse direito ao seu duplo.
Nesta exposição, cada conjunto funciona como uma ilha ou um sistema isolado e fechado sobre si, sugestivamente alheado de um contexto iconograficamente mais referencial. Cada superfície ou imagem remete para outra, mas a sua referencialidade encontra-se fechada no jogo de reciprocidade e cercada pelo vazio que refere o título da exposição. Estes trabalhos são, desse modo, uma espécie de curto-circuito gráfico, onde os elementos se viram frente a frente, face a face, rodeados pelo vácuo. (I)
Paulo Freire de Almeida, 2020