Fotografia: André Lemos Pinto
Auréola, Galeria ARTLAB24, Espinho, março 2023
Curadoria de André Lemos Pinto e Paulo Moreira com produção de Fernando Pinto
Cláudia Amandi, Auréola
Galeria ARTLAB24, Espinho, março 2023
Na exposição “Auréola” de 2023, na galeria ARTLAB24 em Espinho, Cláudia Amandi prossegue a sua linha de pesquisa sobre o Desenho. Mais concretamente, sobre os modos de produção e presença do desenho, tendo cada vez mais como horizonte, os limites da sua condição material e a sua relação com o espaço e tridimensionalidade. Porém, nesta exposição, mais do que evidenciar os aspetos físicos e processuais do desenho, Cláudia Amandi introduz abertamente uma dimensão literária ou poética, tornada sensível através da palavra, dos títulos e das citações. A partir de fragmentos de três contos infantis de Sophia de Mello Breyner Andresen, a exposição é pensada a partir de uma ideia de encantamento ou de um mundo paralelo e feliz, que se supõe cada vez ser maís do domínio da fábula e da fantasia.
A esse propósito o título, Auréola[1] deriva de um texto homónimo de Giorgio Agamben, onde num encadeamento de citações – de Walter Benjamim, a Gershon Schollen e finalmente, Ernst Bloch – se lê:
“Um rabino, um verdadeiro cabalista, disse um dia: para instaurar o reino da paz não é necessário destruir tudo e dar início a um mundo completamente novo; basta apenas deslocar ligeiramente esta taça ou este arbusto, ou aquela pedra e proceder assim em relação a todas as coisas. Mas este ‘ligeiramente’ é tão difícil de realizar e a sua medida tão difícil de encontrar que, no que diz respeito ao mundo, os homens não são capazes de o fazer e é necessário que chegue o Messias”.
Como desenvolve Agamben, esta é a tese recorrente, segundo a qual, o mundo na sua versão final será como agora, porém, “um pouco diferente”. E essa diferença não estará nas coisas ou nas pessoas, mas algures numa periferia invisível, no espaço entre elas. Assim, depois de encontrada a perfeição e a felicidade, existe ainda possibilidade de cada ser receber uma auréola. Esse fogo ou luz que será atribuído como uma recompensa, não tem nada de essencial, pois atingiu-se a perfeição, mas é como uma possibilidade mais, após a realização de todas as outras possibilidades. A auréola pode ser entendida como uma figura ou sinal da completude, como o encontro da medida certa, do deslocamento ideal de cada coisa. Um mundo final onde tudo tivesse encontrado o seu lugar seria iluminado por auréolas.
Assim, nesta exposição Cláudia Amandi parece entregar-se ao exercício de procurar o lugar certo, de ensaiar o seu deslocamento e a sua posição. E, se esse exercício é uma missão impossível, a possibilidade de realizar essa pretensão no espaço expositivo é o âmbito da tarefa artística.
Em Auréola, a referência figurativa é mais presente do que em exposições anteriores. Os objetos e desenhos remetem para formas reconhecíveis e elementos de uma narrativa. Nesse exercício veja-se o trabalho Eco, onde o excerto “Foram pelo caminho ao longo do abismo até à floresta. A lua cheia iluminava os montes e os campos. Quando chegaram à floresta, o Poeta pediu: - Oriana, encanta tudo. E Oriana levantou a sua varinha de condão e tudo ficou encantado.”, do livro “A Fada Oriana” de Sophia é repetido como eco e a sua posição e tonalidade é indefinidamente variada e deslocada. A floresta é confiada a Oriana que deve zelar pelas suas criaturas e coisas. Assim entrega-se a contínuas tarefas de reparação e ajuste, colocando as coisas no seu lugar. A crença no poder sobrenatural surge como uma derradeira esperança para encontrar a posição das coisas, uma deslocação milagrosa, um efeito de magia.
Numa primeira impressão, os trabalhos sugerem alguma desconexão, mas a sua referência comum reside no espaço da floresta e no conceito de encantamento. Tranças e linhas de troncos de árvores, ramagens e estrelas, são vestígios quase abstratos de um conto de fadas.
Em Eco sugere-se também a ideia de perda de individualidade sob o efeito da multiplicação ou de uma mudança. Essa ideia de duplo, já explorada na exposição anterior (Vácuo, 2020) surge em vários trabalhos, como nas esculturas “Gémeas”, onde colares feitos de pequenos arames e pestanas postiças assentes em duas linhas desenhadas na parede, remetem para presenças de fábulas infantis, ou em Muito alto (“E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e redonda do céu”)[2], onde duas folhas de papel manchadas de preto diferem pela presença e ausência de orifícios que projetam uma sombra na parede. Essa réplica é uma forma de produzir uma deslocação, criar uma mudança, um duplo estado e uma incerta vibração no seu espaço, que atua na perceção do espectador. Mas também em Agora (“Agora toda a floresta se iluminava. (…) grandes raios de luz passavam entre os troncos e as ramagens”)[3], as linhas de troncos e ramagens repetem-se como um eco, um desdobramento contínuo em outra coisa, uma procura do lugar certo.
“Trança” e “A Porta” recriam a mesma atmosfera da fantasia, dos seus espaços e ações. “Trança” não só representa o arranjo do cabelo, como a própria ação de entrançar, mas também a importância do próprio cabelo em histórias populares, como Sanção e Dalila. “Porta” representa o lugar de passagem, ou o portal para universos paralelos, um espaço duplo, onde talvez tudo seja como aqui, apenas “um pouco diferente”.
Em jeito de conclusão, ao longo do espaço, uma linha inusitada marca a presença no vazio, como o sinal de uma aurora imaterial e permanente, envolvendo o público e o trabalho. Essa linha é a deslocação que a cada momento se produz no diálogo entre os olhares dos espectadores que cruzam a exposição. Ou como na história de Oriana, uma fada “que encanta os jardins”.
Paulo Freire de Almeida
2023
[1] Agamben, Giorgio, A Comunidade que Vem, Presença, 1993.
[2] Alguns títulos retiram uma palavra a excertos que utiliza. Neste caso, o excerto é retirado de outro livro de Sophia de Mello Breyner intitulado “A Noite de Natal”, p.16, Edições Figueirinhas (não tem data de impressão)
[3] Neste título, o excerto é retirado do livro “O Cavaleiro da Dinamarca” da mesma autora, p. 53, Edições Figueirinhas (não tem data de impressão)
Galeria ARTLAB24, Espinho, março 2023
Na exposição “Auréola” de 2023, na galeria ARTLAB24 em Espinho, Cláudia Amandi prossegue a sua linha de pesquisa sobre o Desenho. Mais concretamente, sobre os modos de produção e presença do desenho, tendo cada vez mais como horizonte, os limites da sua condição material e a sua relação com o espaço e tridimensionalidade. Porém, nesta exposição, mais do que evidenciar os aspetos físicos e processuais do desenho, Cláudia Amandi introduz abertamente uma dimensão literária ou poética, tornada sensível através da palavra, dos títulos e das citações. A partir de fragmentos de três contos infantis de Sophia de Mello Breyner Andresen, a exposição é pensada a partir de uma ideia de encantamento ou de um mundo paralelo e feliz, que se supõe cada vez ser maís do domínio da fábula e da fantasia.
A esse propósito o título, Auréola[1] deriva de um texto homónimo de Giorgio Agamben, onde num encadeamento de citações – de Walter Benjamim, a Gershon Schollen e finalmente, Ernst Bloch – se lê:
“Um rabino, um verdadeiro cabalista, disse um dia: para instaurar o reino da paz não é necessário destruir tudo e dar início a um mundo completamente novo; basta apenas deslocar ligeiramente esta taça ou este arbusto, ou aquela pedra e proceder assim em relação a todas as coisas. Mas este ‘ligeiramente’ é tão difícil de realizar e a sua medida tão difícil de encontrar que, no que diz respeito ao mundo, os homens não são capazes de o fazer e é necessário que chegue o Messias”.
Como desenvolve Agamben, esta é a tese recorrente, segundo a qual, o mundo na sua versão final será como agora, porém, “um pouco diferente”. E essa diferença não estará nas coisas ou nas pessoas, mas algures numa periferia invisível, no espaço entre elas. Assim, depois de encontrada a perfeição e a felicidade, existe ainda possibilidade de cada ser receber uma auréola. Esse fogo ou luz que será atribuído como uma recompensa, não tem nada de essencial, pois atingiu-se a perfeição, mas é como uma possibilidade mais, após a realização de todas as outras possibilidades. A auréola pode ser entendida como uma figura ou sinal da completude, como o encontro da medida certa, do deslocamento ideal de cada coisa. Um mundo final onde tudo tivesse encontrado o seu lugar seria iluminado por auréolas.
Assim, nesta exposição Cláudia Amandi parece entregar-se ao exercício de procurar o lugar certo, de ensaiar o seu deslocamento e a sua posição. E, se esse exercício é uma missão impossível, a possibilidade de realizar essa pretensão no espaço expositivo é o âmbito da tarefa artística.
Em Auréola, a referência figurativa é mais presente do que em exposições anteriores. Os objetos e desenhos remetem para formas reconhecíveis e elementos de uma narrativa. Nesse exercício veja-se o trabalho Eco, onde o excerto “Foram pelo caminho ao longo do abismo até à floresta. A lua cheia iluminava os montes e os campos. Quando chegaram à floresta, o Poeta pediu: - Oriana, encanta tudo. E Oriana levantou a sua varinha de condão e tudo ficou encantado.”, do livro “A Fada Oriana” de Sophia é repetido como eco e a sua posição e tonalidade é indefinidamente variada e deslocada. A floresta é confiada a Oriana que deve zelar pelas suas criaturas e coisas. Assim entrega-se a contínuas tarefas de reparação e ajuste, colocando as coisas no seu lugar. A crença no poder sobrenatural surge como uma derradeira esperança para encontrar a posição das coisas, uma deslocação milagrosa, um efeito de magia.
Numa primeira impressão, os trabalhos sugerem alguma desconexão, mas a sua referência comum reside no espaço da floresta e no conceito de encantamento. Tranças e linhas de troncos de árvores, ramagens e estrelas, são vestígios quase abstratos de um conto de fadas.
Em Eco sugere-se também a ideia de perda de individualidade sob o efeito da multiplicação ou de uma mudança. Essa ideia de duplo, já explorada na exposição anterior (Vácuo, 2020) surge em vários trabalhos, como nas esculturas “Gémeas”, onde colares feitos de pequenos arames e pestanas postiças assentes em duas linhas desenhadas na parede, remetem para presenças de fábulas infantis, ou em Muito alto (“E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e redonda do céu”)[2], onde duas folhas de papel manchadas de preto diferem pela presença e ausência de orifícios que projetam uma sombra na parede. Essa réplica é uma forma de produzir uma deslocação, criar uma mudança, um duplo estado e uma incerta vibração no seu espaço, que atua na perceção do espectador. Mas também em Agora (“Agora toda a floresta se iluminava. (…) grandes raios de luz passavam entre os troncos e as ramagens”)[3], as linhas de troncos e ramagens repetem-se como um eco, um desdobramento contínuo em outra coisa, uma procura do lugar certo.
“Trança” e “A Porta” recriam a mesma atmosfera da fantasia, dos seus espaços e ações. “Trança” não só representa o arranjo do cabelo, como a própria ação de entrançar, mas também a importância do próprio cabelo em histórias populares, como Sanção e Dalila. “Porta” representa o lugar de passagem, ou o portal para universos paralelos, um espaço duplo, onde talvez tudo seja como aqui, apenas “um pouco diferente”.
Em jeito de conclusão, ao longo do espaço, uma linha inusitada marca a presença no vazio, como o sinal de uma aurora imaterial e permanente, envolvendo o público e o trabalho. Essa linha é a deslocação que a cada momento se produz no diálogo entre os olhares dos espectadores que cruzam a exposição. Ou como na história de Oriana, uma fada “que encanta os jardins”.
Paulo Freire de Almeida
2023
[1] Agamben, Giorgio, A Comunidade que Vem, Presença, 1993.
[2] Alguns títulos retiram uma palavra a excertos que utiliza. Neste caso, o excerto é retirado de outro livro de Sophia de Mello Breyner intitulado “A Noite de Natal”, p.16, Edições Figueirinhas (não tem data de impressão)
[3] Neste título, o excerto é retirado do livro “O Cavaleiro da Dinamarca” da mesma autora, p. 53, Edições Figueirinhas (não tem data de impressão)
Cláudia Amandi, Halo,
Aetlab24, Espinho, march 2023
In the 2023 exhibition "Auréola" (Halo), at the ARTLAB24 gallery in Espinho, Cláudia Amandi continues her line of research on Drawing. About the ways of production and presence of drawing, considering the limits of its material condition and its relationship with space and three-dimensionality. However, in this exhibition, more than highlighting the material aspects of drawing, Cláudia Amandi openly introduces a literary or poetic dimension, made sensitive through words, titles and quotations. Based on fragments of three children's stories by Sophia de Mello Breyner Andresen, the exhibition is conceived from an idea of enchantment or a parallel and happy world, which is increasingly supposed to be in the domain of fable and fantasy. In this regard, the title, Aureola[1] derives from a text of the same name by Giorgio Agamben, where a chain of quotations – from Walter Benjamin, Gershon Schollen and finally, Ernst Bloch – reads:
"A rabbi, a true Kabbalist, once said: in order to establish the kingdom of peace it is not necessary to destroy everything and start a completely new world; It is enough just to move this cup or this bush or that stone slightly and do so in relation to all things. But this 'slightly' is so difficult to realize and its measure so difficult to find that, as far as the world is concerned, men are not able to do it and the Messiah must come."
As Agamben develops, this is the recurring thesis, according to which, the world in its final version will be as it is now, but "a little different". And that difference will not be in the things or people, but somewhere in an invisible periphery, in the space between them. Thus, after perfection and happiness have been found, there is still the possibility of each being receiving a halo. That fire or light, given as a reward, has nothing essential in it, because perfection has been attained yet, but it is like one more possibility, after the fulfillment of all other possibilities. The halo can be understood as a figure or sign of completeness, as the finding of the right measure, of the ideal displacement of each thing. A final world where everything had found its place would be illuminated by halos. Thus, in this exhibition, Cláudia Amandi seems to indulge in the exercise of looking for the right place, of rehearsing her displacement and her position. And, if this exercise is an impossible mission, the possibility of realizing this intention in the exhibition space is the scope of the artistic task.
In Auréola, the figurative reference is more present than in previous exhibitions. The objects and drawings refer to recognizable shapes and elements of a narrative. In this exercise, see the work Eco, where the excerpt "They went along the path along the abyss to the forest. The full moon illuminated the hills and fields. When they reached the forest, the Poet asked: "Oriana, enchant everything. And Oriana raised her magic wand and everything was enchanted.", from Sophia's book "The Fairy Oriana" is repeated as an echo and its position and tonality is indefinitely varied and displaced. The forest is entrusted to Oriana who must take care of her creatures and things. So you indulge in continuous repair and adjustment tasks, putting things in their place. The belief in supernatural power appears as a last hope for finding the position of things, a miraculous displacement, an effect of magic. As a first impression, the works suggest some disconnection, but their common reference lies in the space of the forest and the concept of enchantment. Braids and rows of tree trunks, branches and stars in the sky, are almost abstract vestiges of a fairy tale. Eco also suggests the idea of loss of individuality under the effect of multiplication or change. This idea of the double, already explored in the previous exhibition (Vácuo, 2020) appears in several works, such as in the sculptures "Twins", where necklaces made of small wires and false eyelashes resting on two lines drawn on the wall, refer to the presence of children's fables, or in Muito Alto (Very High) ("And very high, above the trees, was the enormous and round darkness of the sky")[2], where two sheets of paper stained black differ by the presence and absence of holes that cast a shadow on the wall. This replica is a way of producing a displacement, creating a change, a double state and an uncertain vibration in its space, which acts on the viewer's perception. But also in Agora ("Now the whole forest was lit up. (...) great rays of light passed between the trunks and the branches")[3], the lines of trunks and branches repeat themselves like an echo, a continuous unfolding into something else, a search for the right place. "Braid" and "The Door" recreate the same atmosphere of fantasy, its spaces and actions. "Braiding" not only represents the arrangement of hair, such as the action of braiding itself, but also the importance of hair itself in popular stories, such as Sanction and Delilah. "Door" represents the place of passage, or the portal to parallel universes, a double space, where perhaps everything is as it is here, only "a little different."
By way of conclusion, throughout the space, an unusual line marks the presence in the void, as the sign of an immaterial and permanent aurora, involving the public and the work. This line is the displacement that occurs at each moment in the dialogue between the gazes of the spectators who cross the exhibition. Or as in the story of Oriana, a fairy "who enchants the gardens".
[1] Agamben, Giorgio, The Coming Community.
[2] Some titles take a word from excerpts you use. In this case, the excerpt is taken from another book by Sophia de Mello Breyner entitled "A Noite de Natal", p.16, Edições Figueirinhas (no printing date)
[3] In this title, the excerpt is taken from the book "The Knight of Denmark" by the same author, p. 53, Edições Figueirinhas (no printing date)