Cérebros e Cabeças, 1995, Galeria Canvas
Brains and Heads Series
Na sequência das experiências em torno da tecnologia da gravura, e abrindo uma pausa na realização de esculturas, Cláudia Amandi regressa com profundidade à exploração das imagens gráficas com a série de gravuras que dará corpo à sua primeira exposição individual, na galeria Canvas . O trabalho desenvolvido nos derradeiros anos escolares é continuado nesta série de onde se evidencia a autonomia face aos problemas da escultura e da tridimensionalidade.
Essa série desenvolve-se em torno de algumas imagens retiradas de ressonâncias magnéticas de cabeças e cérebros. A imagem médica e científica torna-se assim a base de um novo tema, aparentemente ligado às fronteiras da representação, as novas tecnologias e à revelação de formas familiares e simultaneamente insólitas. A singularidade de algumas imagens científicas desta natureza - ecografias, ressonâncias magnéticas e até radiografias – surgem como imagens a partir de sinais e frequências de onda que não são objeto do nosso sentido visual. São produzidas a partir de sons, radiações, campos magnéticos e não de luz refletida nas superfícies. Aludem visualmente à matéria pelo contacto com frequências de onda fora do nosso espectro visual. É precisamente essa natureza invasiva na matéria que produz o efeito de revelação do interior e da massa compacta dos corpos. A luz apenas se propaga no vazio e destas ondas espera-se que se propaguem na densidade material do corpo. Numa primeira análise, estas imagens suscitam dois paradoxos. No contexto dos processos trata-se de transpor para o plano de uma imagem artesanal e reminiscente de processos ancestrais, novas imagens criadas num contexto ‘imaterial’: ondas magnéticas, sons, radiografias, em suma, imagens obtidas a partir não do contacto de forças materiais, mas de frequências de onda. Nesse gesto existe uma tentativa de materialização e inscrição física de formas originalmente captadas à margem da visão.
Num segundo paradoxo, estas gravuras revelam a exterioridade (imagem, presença) de um interior anatómico conotado com a mente, o “espírito, a alma”. As imagens desarticulam a relação entre fora e dentro, matéria e espírito, onda e corpo, na transposição de meios de produção e na iconografia estranhamente realista e disfuncional da representação clinica. Destas imagens, abandonou-se a identificação de uma doença ou de qualquer motivação médica. Como recolha arqueológica em um tempo futuro, parecem imagens reutilizadas numa qualquer ficção onde se perdeu a função original de diagnóstico.
Nesse novo contexto ficcional, o sujeito analisado torna-se a figura que alterna entre o devaneio psicadélico e uma conjuntura de distanciamento irónico relativamente aos códigos da imagem médica. Com efeito, as cabeças em causa, pertenceram a alguém, agora desprovido de identidade, tornada figura a habitar um mundo transfigurado, como inédita identidade forjada no novo jogo de signos: transparências, padrões, cores alteradas, texturas, combinações figurativas.
Como exercício lúdico, esta série de Cabeças e Cérebros parte de uma passagem das imagens médicas a fotolitos e destes à chapa de gravura. Sobre a imagem gráfica obtida, são produzidas variantes onde a superfície e a cor se alteram em jogos visuais. Nesse processo emerge, no entanto, uma combinação entre o efeito futurista e fantasmagórico da ressonância magnética e o ambiente arqueológico da gravura. Dessa combinação resulta uma intemporalidade simples e desarmante.
Como foi referido inicialmente, a série Cabeças e Cérebros é autónoma de qualquer conceito escultórico ou tridimensional. Neste trabalho Cláudia Amandi aproxima a gravura de uma experiência pictórica e puramente imagética pela exploração de cores, texturas e formas planas. Todavia essa impressão pode ser aparente e pela repetição da iconografia, surgem algumas dúvidas. A série mostra espaço e volume interior da cabeça onde estão os cérebros como um espaço de contenção. Assim, as imagens de Cérebros evocam a relação entre interioridade e exterioridade a partir da condição virtual de imagens médicas que não representam o modelo, mas parecem invadir a sua privacidade ou interioridade, revelando-o como matéria. Nessa condição estas gravuras reportam para uma forma de intromissão da imagem no corpo e na mente, evocando a possibilidade de representar o invisível.
Na série Cérebros e Cabeças, Cláudia Amandi propõe uma reflexão acerca das condições da imagem, na oposição entre a sua materialidade e o seu processamento, mas também, entre a condição de revelar e representar. Neste último tema, a revelação sugere o papel da imagem como instrumento de uma inadvertida inconfidência, um gesto para quebrar o segredo e a inviolabilidade do corpo e da mente. Entre a materialidade da imagem e do corpo e a energia da ressonância magnética e da mente, o personagem encartado desta série foi promovido de mero espécimen médico a figura central de uma história na qual nos revemos como possíveis objetos clínicos transfigurados em pessoas. Tal como o personagem desta série, o espectador vacila entre as suas condições clínica e moral.
As a result of experiences in engraving technology, Cláudia Amandi returns to graphic pictures with a group of prints, in his first solo exhibition, at Gallery Canvas. The work developed in the final school years is continued in this series, more independent of sculpture.
This group of prints is developed from MRI scans of heads and brains. The medical and scientific image becomes the basis of a new theme, apparently connected to the borders of imagery, new technologies, and the revelation of familiar and simultaneously unusual forms. The uniqueness of some scientific images of this kind, scans, MRIs, and even x-rays is their nature, based on wave frequencies not subjected to our visual sense. These images are produced from sounds, radiation, and magnetic fields rather than reflected light on surfaces. Visually allude to the matter by contact with wave frequencies out of our visual spectrum. It is precisely this invasive nature in this area that produces the effect of the revelation of the interior of compact mass bodies. Light propagates in the void and waves propagate in the density of the material body. At first sight, these pictures create two paradoxes. Immaterial images like magnetic waves, sounds, and x-rays, in short, images obtained from wave frequency are processed in a very material process like engraving. This is an attempt to materialize and record forms originally captured outside the scope of vision. In the second paradox, these prints reveal the exteriority (image, presence) of an anatomical part related to the mind, the spirit, and the soul. The images disjoint the relationship between outside and inside, matter and spirit, and body, by the means of production and dysfunctional clinical iconography. These images are separated from their medical function, diagnosis or examination, or any medical motivation. As archaeological collections in the future time, they look like any fictional reused images where the original diagnostic function is lost.
In this new fictional ground, the subject becomes a changing from psychedelic reverie and a distancing irony regarding medical codes. In fact, the heads in question belonged to someone, now without identity, a figure to live in the transfigured world, as forged identity in the new play of signs: transparencies, patterns, colors, textures, figurative combinations. As an exercise, this series of "heads" is part of a passage of medical images to Photolithography and to the engraving plate. Over the graphic result are made variants where the surface and color change in visual games. However, emerges a combination of futuristic and ghostly effects of magnetic resonance and engraving archaeological flair. This combination leads to a simple and disarmingly timeless result.
Heads and Brains are apparently free from sculptural intentions, with a pictorial exploration of colors, textures, and shapes. But the images stress the concept of inner volume, container, and mass, evoking the relation between inside and outside, hiding and revealing. These medical pictures do not represent an individual subject but seem to invade its privacy revealing it as physical matter and substance. This relation is presented as an interference in the body and mind, playing the possibility of representing the invisible. In the series Brains and Heads, Claudia Amandi offers a reflection on the conditions of picture making and the opposition between its materiality and its process, but also between the condition of revealing and depicting. This last topic, the revelation suggests the role of image as an involuntary peeping display, a gesture to break the secrecy and inviolability of the body and mind. Between the materiality of the picture and the body and the energy of magnetic resonance of the mind, the character in this series was promoted from a mere medical specimen to the central figure of a story. Like him, the spectator balances between clinical and moral conditions. (I)
Brains and Heads Series
Na sequência das experiências em torno da tecnologia da gravura, e abrindo uma pausa na realização de esculturas, Cláudia Amandi regressa com profundidade à exploração das imagens gráficas com a série de gravuras que dará corpo à sua primeira exposição individual, na galeria Canvas . O trabalho desenvolvido nos derradeiros anos escolares é continuado nesta série de onde se evidencia a autonomia face aos problemas da escultura e da tridimensionalidade.
Essa série desenvolve-se em torno de algumas imagens retiradas de ressonâncias magnéticas de cabeças e cérebros. A imagem médica e científica torna-se assim a base de um novo tema, aparentemente ligado às fronteiras da representação, as novas tecnologias e à revelação de formas familiares e simultaneamente insólitas. A singularidade de algumas imagens científicas desta natureza - ecografias, ressonâncias magnéticas e até radiografias – surgem como imagens a partir de sinais e frequências de onda que não são objeto do nosso sentido visual. São produzidas a partir de sons, radiações, campos magnéticos e não de luz refletida nas superfícies. Aludem visualmente à matéria pelo contacto com frequências de onda fora do nosso espectro visual. É precisamente essa natureza invasiva na matéria que produz o efeito de revelação do interior e da massa compacta dos corpos. A luz apenas se propaga no vazio e destas ondas espera-se que se propaguem na densidade material do corpo. Numa primeira análise, estas imagens suscitam dois paradoxos. No contexto dos processos trata-se de transpor para o plano de uma imagem artesanal e reminiscente de processos ancestrais, novas imagens criadas num contexto ‘imaterial’: ondas magnéticas, sons, radiografias, em suma, imagens obtidas a partir não do contacto de forças materiais, mas de frequências de onda. Nesse gesto existe uma tentativa de materialização e inscrição física de formas originalmente captadas à margem da visão.
Num segundo paradoxo, estas gravuras revelam a exterioridade (imagem, presença) de um interior anatómico conotado com a mente, o “espírito, a alma”. As imagens desarticulam a relação entre fora e dentro, matéria e espírito, onda e corpo, na transposição de meios de produção e na iconografia estranhamente realista e disfuncional da representação clinica. Destas imagens, abandonou-se a identificação de uma doença ou de qualquer motivação médica. Como recolha arqueológica em um tempo futuro, parecem imagens reutilizadas numa qualquer ficção onde se perdeu a função original de diagnóstico.
Nesse novo contexto ficcional, o sujeito analisado torna-se a figura que alterna entre o devaneio psicadélico e uma conjuntura de distanciamento irónico relativamente aos códigos da imagem médica. Com efeito, as cabeças em causa, pertenceram a alguém, agora desprovido de identidade, tornada figura a habitar um mundo transfigurado, como inédita identidade forjada no novo jogo de signos: transparências, padrões, cores alteradas, texturas, combinações figurativas.
Como exercício lúdico, esta série de Cabeças e Cérebros parte de uma passagem das imagens médicas a fotolitos e destes à chapa de gravura. Sobre a imagem gráfica obtida, são produzidas variantes onde a superfície e a cor se alteram em jogos visuais. Nesse processo emerge, no entanto, uma combinação entre o efeito futurista e fantasmagórico da ressonância magnética e o ambiente arqueológico da gravura. Dessa combinação resulta uma intemporalidade simples e desarmante.
Como foi referido inicialmente, a série Cabeças e Cérebros é autónoma de qualquer conceito escultórico ou tridimensional. Neste trabalho Cláudia Amandi aproxima a gravura de uma experiência pictórica e puramente imagética pela exploração de cores, texturas e formas planas. Todavia essa impressão pode ser aparente e pela repetição da iconografia, surgem algumas dúvidas. A série mostra espaço e volume interior da cabeça onde estão os cérebros como um espaço de contenção. Assim, as imagens de Cérebros evocam a relação entre interioridade e exterioridade a partir da condição virtual de imagens médicas que não representam o modelo, mas parecem invadir a sua privacidade ou interioridade, revelando-o como matéria. Nessa condição estas gravuras reportam para uma forma de intromissão da imagem no corpo e na mente, evocando a possibilidade de representar o invisível.
Na série Cérebros e Cabeças, Cláudia Amandi propõe uma reflexão acerca das condições da imagem, na oposição entre a sua materialidade e o seu processamento, mas também, entre a condição de revelar e representar. Neste último tema, a revelação sugere o papel da imagem como instrumento de uma inadvertida inconfidência, um gesto para quebrar o segredo e a inviolabilidade do corpo e da mente. Entre a materialidade da imagem e do corpo e a energia da ressonância magnética e da mente, o personagem encartado desta série foi promovido de mero espécimen médico a figura central de uma história na qual nos revemos como possíveis objetos clínicos transfigurados em pessoas. Tal como o personagem desta série, o espectador vacila entre as suas condições clínica e moral.
As a result of experiences in engraving technology, Cláudia Amandi returns to graphic pictures with a group of prints, in his first solo exhibition, at Gallery Canvas. The work developed in the final school years is continued in this series, more independent of sculpture.
This group of prints is developed from MRI scans of heads and brains. The medical and scientific image becomes the basis of a new theme, apparently connected to the borders of imagery, new technologies, and the revelation of familiar and simultaneously unusual forms. The uniqueness of some scientific images of this kind, scans, MRIs, and even x-rays is their nature, based on wave frequencies not subjected to our visual sense. These images are produced from sounds, radiation, and magnetic fields rather than reflected light on surfaces. Visually allude to the matter by contact with wave frequencies out of our visual spectrum. It is precisely this invasive nature in this area that produces the effect of the revelation of the interior of compact mass bodies. Light propagates in the void and waves propagate in the density of the material body. At first sight, these pictures create two paradoxes. Immaterial images like magnetic waves, sounds, and x-rays, in short, images obtained from wave frequency are processed in a very material process like engraving. This is an attempt to materialize and record forms originally captured outside the scope of vision. In the second paradox, these prints reveal the exteriority (image, presence) of an anatomical part related to the mind, the spirit, and the soul. The images disjoint the relationship between outside and inside, matter and spirit, and body, by the means of production and dysfunctional clinical iconography. These images are separated from their medical function, diagnosis or examination, or any medical motivation. As archaeological collections in the future time, they look like any fictional reused images where the original diagnostic function is lost.
In this new fictional ground, the subject becomes a changing from psychedelic reverie and a distancing irony regarding medical codes. In fact, the heads in question belonged to someone, now without identity, a figure to live in the transfigured world, as forged identity in the new play of signs: transparencies, patterns, colors, textures, figurative combinations. As an exercise, this series of "heads" is part of a passage of medical images to Photolithography and to the engraving plate. Over the graphic result are made variants where the surface and color change in visual games. However, emerges a combination of futuristic and ghostly effects of magnetic resonance and engraving archaeological flair. This combination leads to a simple and disarmingly timeless result.
Heads and Brains are apparently free from sculptural intentions, with a pictorial exploration of colors, textures, and shapes. But the images stress the concept of inner volume, container, and mass, evoking the relation between inside and outside, hiding and revealing. These medical pictures do not represent an individual subject but seem to invade its privacy revealing it as physical matter and substance. This relation is presented as an interference in the body and mind, playing the possibility of representing the invisible. In the series Brains and Heads, Claudia Amandi offers a reflection on the conditions of picture making and the opposition between its materiality and its process, but also between the condition of revealing and depicting. This last topic, the revelation suggests the role of image as an involuntary peeping display, a gesture to break the secrecy and inviolability of the body and mind. Between the materiality of the picture and the body and the energy of magnetic resonance of the mind, the character in this series was promoted from a mere medical specimen to the central figure of a story. Like him, the spectator balances between clinical and moral conditions. (I)