F=0, 1989
Ferro, madeira, corda
A segunda escultura de Cláudia Amandi, realizada no mesmo ano e também como exercício escolar, prolonga geralmente as características de F=m.a. Uma cadeira do mesmo modelo clássico com uma almofada agora amarrada por uma corda, encontra-se encravada numa espécie de uma jaula, dando a impressão de um movimento impossível. Quando comparada com F=m.a trata-se de uma escultura a vários níveis mais inquietante, tanto pelo conteúdo representado, como pela ausência de um equilíbrio apaziguador, presente na primeira escultura. Sob o frio aspeto de uma estrutura minimalista de metal, bem como no caráter novamente neutro e polido da cadeira e da almofada, representa-se uma tentativa de fuga no instante em que se decide pelo sucesso ou fracasso dessa tentativa, no efeito final de uma suspensão. A angústia na perceção da peça resulta em parte dessa irresolução no movimento da forma da cadeira, funcionando como um personagem na encenação da peça.
Numa análise material combina-se novamente o objeto encontrado e quotidiano da cadeira, com a almofada esculpida e neste caso, também, uma corda verdadeira. O elemento espacial do chão/suporte é agora um espaço envolvente da estrutura fechada. Esse elemento define o espaço e volume da escultura como um invólucro, conferindo ao conjunto uma força fechada sobre si própria, contendo em si as tensões latentes entre objetos e o próprio espaço da exposição. No seio destas forças, o movimento de dentro para fora parece estar sempre sobre a sombra de um espaço concentracionário irremediavelmente fechado em si mesmo e ameaçando a sugestão de qualquer movimento de fuga. A sugestão de fuga é reforçada pelo pormenor da perna da cadeira fora da estrutura ser maior e de um tom mais escuro. Como também, se nessa fuga o corpo se transformasse e adquirisse uma nova forma. Essa alteração deu-se porque Cláudia Amandi substituiu a perna existente por uma nova perna construída.
Processualmente, a escultura F=0 aprofunda o carácter de construção, de objeto que não propõe uma imitação, mas a concretização visual de um conceito, assumindo o carácter estrutural e o valor discursivo dos materiais – o ferro, a madeira – bem como a própria lógica de encaixe e solidez material apoiada num forte sentido de desenho, proporção e ritmo visual. Também relativamente à primeira peça – F=m.a – a linguagem acentua a redução formal, o minimalismo e a seleção de elementos, orientando o resultado para um efeito também mais imediato: uma peça essencialmente vertical que impõe a sua presença austera ao espectador.
Porém, a estrutura metálica funciona, tal como o chão de F=m.a, como um prolongamento gráfico de um desenho com linhas horizontais. O carácter figurativo da jaula começa por ser acentuação de uma estrutura gráfica motivando o conteúdo simbólico. Tal como se pode observar em alguns desenhos preparatórios, a estrutura de metal é um motivo gráfico por excelência, uma grelha linear onde se espera a inscrição de novas formas e textos. Passada à tridimensionalidade da escultura, a grelha desdobra-se no espaço de contenção como solução em parte operativa de definição de volume, adquirindo a função simbólica central da peça. A forma da jaula é abstrata na sua referencialidade geométrica. F=0 é também uma peça que integra o vocabulário do desenho, pela aplicação da geometria e da regularidade das linhas, como motivos simultaneamente abstratos ao serviço de ritmos visuais e sistemas de regulação, mas também, funções de representação, designadamente no objeto da jaula.
Numa análise iconográfica a peça representa uma impossibilidade física, um acontecimento paradoxal. A cadeira iniciou um movimento e ficou a meio, dentro e fora, aprisionada por uma rede que se foi formando enquanto uma perna da cadeira conseguia sair do seu espaço, mas fixando a cadeira nessa tentativa. O sentido visual da peça reconstitui-se a partir da hipótese da formação de uma malha gerada sobre a cadeira aprisionando o seu movimento. Paradoxalmente, o objeto estático da estrutura metálica representa um segundo movimento aprisionando a cadeira de madeira, surpreendendo-a no seu movimento de fuga. A ideia de fuga é, porém, apenas dada por um desvio geométrico relativamente ao chão. A obliquidade da cadeira, o seu descentramento indicia uma posição original, um estado de início sugerido como prólogo da narrativa. A cadeira é apresentada como uma presa, um troféu embalsamado na sua tentativa de fuga. A almofada pressionada por um ferro acentua a ideia de uma força que se exerce sobre o corpo como um momento particularmente tenso da imagem. Nesse contacto a peça assume um sentido eminentemente sensível e corporal. Cláudia Amandi utiliza a estratégia de pensar o objeto como uma personagem, o sujeito de um movimento no palco de representações cénicas. Esta estratégia poética insere-se no contexto de objetos escultóricos que encerram uma narrativa, uma espécie de parábola apoiada em formas elementares. Recordemo-nos, nos anos oitenta de Susana Solano, José Pedro Croft, da utilização de uma poética do objeto anónimo – reminiscente da metafísica do quotidiano – combinado com formas estruturais, elementos arquitetónicos, especulações materiais em torno das superfícies. Nesse sentido, e retomando as referências da época, Cláudia Amandi associa uma poética do objeto anónimo e quotidiano, implicada também num espaço de intimidade autorreferencial ou biográfica, com linguagens minimalistas que produzem distanciamento e uma representação de racionalidade.
Acentua-se em F=0 uma consciência da escultura como absorção de vocabulários formais da arquitetura, desenho e pintura, como linguagens abstratas gravitando em torno de objetos comuns, anónimos e imediatamente reconhecíveis. Nesta escultura também se acentua a qualidade abstrata e geométrica sem nomeação exata, suspendendo o desenlace na aparência concisa e reservado das formas e dos volumes. A austeridade da peça impõe um silêncio vertical ao espetador, no que se poderia denominar como uma qualidade monumental, hierática. O desafio paradoxal da cena representada, pela subtil evocação de movimentos mais evidentes ou subentendidos, bem como a redução de dispositivos formais, indica uma evolução no sentido da segurança no domínio dos processos de simbolização escultórica que prosseguirá temporariamente numa ideia de abstração.
Dessa conceção formal, Cláudia Amandi evolui progressivamente para uma linguagem de depuração onde a geometria minimal das formas sublinha o caráter anónimo e neutro dos objetos, em sintonia com a elaboração das superfícies e das matérias. (I)